Se você for
aos cemitérios de Belém nas segundas feiras, vai encontrar diversos devotos
acendendo velas em determinados túmulos, realizando orações e agradecendo graças
alcançadas: o nome desse evento é o "Culto das Almas", que não é
aprovado pela Igreja mas que possui vários adeptos pela cidade. Vamos entender
um pouco mais sobre essa manifestação popular e também fazer uma reflexão sobre
a morte e sua relação com nossas vidas.
Belo Mausoléu - Santa Isabel/Belém |
Não se sabe
como se originou esse tipo de adoração nos cemitérios da cidade, em especial o
de Santa Isabel e o da Soledade. Não existe um horário definido, mas a maior
concentração de fieis é no final da tarde, entre 17 e 18 horas. O Culto consiste
em solicitar uma graça ao túmulo do “santo popular”, como são conhecidos esses
que atendem aos pedidos, mesmo não pertencendo à hierarquia de santos da igreja
católica, e o devoto deve ir em 7(outros dizem 9) segundas feiras para
agradecer/solicitar graças, acendendo velas ou depositando água mineral no
espaço destinado às oferendas, espaço esse já feito pelos cemitérios para que
não tenhamos prejuízo aos túmulos. Muitos desses “santos populares” possuem
orações próprias.
Anjo e a Alma - Santa Isabel/Belém |
Os túmulos
visitados são de pessoas que tiveram uma vida em sua maioria normal - Donas de
casa, crianças e grandes personalidades da cidade -, mas que sofreram alguma
morte trágica ou simplesmente tiveram uma vida de serviço aos mais pobres e/ou
de uma retidão exemplar.
Túmulo Dr Camilo Salgado - Santo Popular/Belém |
Temos como
exemplo o Doutor Camilo Salgado, médico paraense, nascido em 22 de maio de 1874
e falecido em 2 de março de 1938. Em vida foi médico generalista, ou seja,
tratava de várias doenças e foi um dos fundadores da Sociedade Médico-cirúrgica
do Pará, em 15 de agosto de 1914 e da faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará,
em 1919, sendo o primeiro presidente dessa instituição. Também foi vereador,
governador interino e professor - em outras palavras, uma figura pública
bastante conhecida. Sua fama era de sempre atender de bom grato os pacientes,
sendo conhecido na cidade como um homem bom e preocupado com a saúde dos mais
carentes. Após a sua morte, iniciou-se os comentários que fulano ou beltrano,
quando estavam doentes e solicitaram ajuda ao caridoso doutor, conseguiram sua
cura. Também há relato de operações espirituais orientadas por Camilo Salgado.
A mesma fama também se refere ao Doutor Crasso Barbosa(1886-1919), mas em menor
grau.
Moça do Táxi - Santa Popular/Belém |
Outro caso
famoso é de Severa Romana, que em 2 de julho de 1900 foi morta violentamente
pelo amigo do companheiro dela que tentou manter relações sexuais à força com a
mesma, crime que gerou grande comoção na cidade, pois a mesma estava grávida de
7 meses e manteve a fidelidade ao marido, por isso em seu túmulo está escrito
“Assassinada em defesa de sua honra”. Temos também o caso singelo de Preta
Domingas, mulher negra, escrava que cuidou com muito carinho do filho de um
aristocrata da cidade e, quando o menino se fez homem, ergueu um belo túmulo
para aquela que em sentimento foi sua mãe. A mesma faleceu em 25 de março de
1871.
Pequeno Templo para a criança Bianca Cunha (1978-1984) |
Possíveis
origens históricas.
Em
civilizações antigas existia o culto aos antepassados, como era o caso em Roma,
onde se orava e solicitava proteção aos ancestrais e em alguns momentos do ano
(em especial no início de maio) se orava para que os espíritos se mantivessem
afastados. "LARES" era o nome dado aos espíritos dos antepassados na
Roma antiga. O culto tinha um caráter privado, com o fogo especial acesso e
mantido pelo chefe da família e outro aspecto público, com procissões e
oferendas nos túmulos dos mortos. Essa tradição, com a queda do império romano,
pode ter se degenerado até o atual culto aos mortos que temos em diversas
partes do mundo.
O
Historiador Jean-Claude Schmitt, em “os vivos e os mortos na sociedade
medieval”, relata que a igreja europeia definiu a segunda-feira como um dia
ideal para rezar para as almas que sofriam no inferno e no purgatório pois,
segundo se pensava, o ritmo das almas era parecido com o dos homens no que se
refere ao calendário semanal. Acreditava-se que o sofrimento daquelas ganhava
um descanso no sábado para domingo e reiniciava na noite de domingo para
segunda; sendo assim, seria preferível rezar por elas no momento em que
recomeçava seu suplício. Desse modo, começou um movimento na Europa para visita
aos túmulos durante as segundas, acender velas, realizar orações e oferendas em
missas, e essa tradição no decorrer dos séculos migrou para o continente
latino-americano.
Santos
Populares por Cemitério
- Santa
Isabel, fundado em 1890, possui os seguintes santos: Josephina Conte, Doutor
Camilo Salgado, Crasso Barbosa, Severa Romana.
- São Jorge, fundado na década de 60, possui os seguintes santos: Menina Diene Helen e os
irmãos Marivaldo e Marinaldo do Nascimento
- Soledade,
fundado em 1850, após um surto de febre amarela, cólera e varíola que matou
mais de 30 mil pessoas na cidade. Possui os seguintes santos: Raimundinha
Picanço, Preta Domingas, Crianças como Zezinho, Antônio e Cícero, escrava
Anastácia.
Uma breve
interpretação.
O Culto das
almas não é aprovado pela igreja, tanto a católica quanto a Evangélica. Alguns
setores do espiritismo aprovam e entendem como válida a relação dos devotos com
seus santos populares, e outros mais ligados à doutrina original de Kardec
indicam que as energias enviadas dos devotos para os “santos” apenas alimentam
formas astrais de desencarnados, dessa forma, apenas mantendo neste plano entes
que não deveriam estar mais conosco e que por consequência não são beneficentes
para nenhum dos envolvidos. Enfim, deixamos o leitor livre para o entendimento
do culto, mas o que podemos aprender com essa relação com os mortos?
Podemos
notar que os cemitérios, neste contexto, ganham um novo ar, novo conceito, não
mais de apenas “armazenador de lembranças” ou de corpos sem vida, mas um espaço
de milagres, fé e esperança. Parece uma ironia, numa época tão materialista
quanto a nossa, justamente em um local destinado à morte e à dor podemos
reencontrar e reascender a chama da esperança. Nestes locais podemos encontrar
verdadeiros “santuários” que representam seres sagrados e poderosos. Assim
reinterpretamos a morte, tornando-a novamente o que para muitos sempre
foi…VIDA. E por que não podemos dizer "vida e santidade"?...
Boas
reflexões neste dia dos finados.
Santa Popular Josephina Conte - A moça do táxi |
Autor: Edmilton Furtado